Por Michelle Prazeres*
Você já deve ter ouvido falar em “gestão do tempo”. E em como esta iniciativa pode te ajudar a lançar mão de um conjunto de estratégias que apoiam um processo de organização e redistribuição do seu tempo em uma agenda cada vez mais lotada de compromissos de trabalho, sociais e pessoais.
Vivemos na cultura da velocidade, onde a aceleração social do tempo é uma realidade.
Estamos sempre correndo, sempre cansados e sempre exaustos.
Uma parte de nós vive esta cultura encarnada. E quanto mais corre, mais fica ocupado e mais glorifica este estado permanente de indisponibilidade (leia aqui o texto do Edu Cordeiro sobre normose, a “doença da velocidade como normalidade”).
Mas outra parte de nós parece se incomodar com a pressa como condição e começa a questionar a velocidade como modo de vida. Parte destas pessoas vivem buscando soluções milagrosas que possam ajudar a pisar um pouco no freio e desacelerar.
Reconhecendo esta “janela de oportunidade” de pessoas que parecem querer parar de correr, proliferam iniciativas que buscam incentivar a organização e a distribuição do tempo, para que uma pessoa consiga dar conta de tudo que deve ou quer fazer.
Mas e se for impossível conciliar tudo? E se é justamente por conta de tentar conciliar tudo que andamos com tanta pressa, tão exaustos, tão cansados e sempre sem conseguir dar conta? E o pior: com a sensação de que estamos priorizando urgências e deixando de lado as coisas (que normalmente não são coisas…) mais importantes para trás?
Desconfiar da velocidade “natural” e das fórmulas mágicas
É por isso que tenho desconfiado da ideia de administração do tempo.
Como uma série de estratégias de uma determinada fórmula pode dar certo para tanta gente? Como administrar o tempo para aumentar a produtividade parece ser uma saída, sendo que o que algumas pessoas querem justamente o contrário?
O discurso e a literatura sobre gestão do tempo parecem conter uma contradição interna: fazem você acreditar que deve se exercitar, ter vida social, trabalhar e se alimentar bem; mas, ao mesmo tempo, deve fazer isso tudo para ser mais produtivo! E deve fazer rapidamente, porque se você seguir esta espécie de “dieta milagrosa do tempo” você vai ter um resultado imediato.
É por isso que, em geral esta suposta organização do tempo faz – na verdade – a gente ter mais tempo para trabalhar cada vez mais. E assim, seguimos cansados, exaustos e com pressa e sem conseguir priorizar as nossas relações e as coisas que importam.
O problema é que em geral estas fórmulas, estratégias e técnicas de manejo do tempo ao mesmo tempo em que fazem recair toda a atitude da mudança para o indivíduo, não reconhecem as trajetórias, os contextos, os desejos, os ritmos e as prioridades de cada pessoa. Não necessariamente estão acompanhadas de um olhar para dentro, de autoconhecimento e autoreconhecimento. Normalmente, estão imersas na própria lógica da aceleração social e da cultura da velocidade, quando afirmam que sendo mais rápidos e organizados, vamos conseguir dar conta de tudo.
Além de promover o “multitarefa” (a ideia de gerenciar muitas coisas ao mesmo tempo) e de se conectar com a aceleração (e não com o “slow down” e a ideia de “deixar fluir”), a gestão do tempo parece ser insustentável, ao propor que você se organize para dar conta de cada vez mais coisas.
Mas não queremos dar conta de tudo.
Queremos ter que dar conta de menos!
Por conta das vivências e reflexões que temos construído no Desacelera SP, recebo inúmeros depoimentos de pessoas que tentaram algumas técnicas de manejo do tempo nesta perspectiva e só se cansaram mais. E chegaram a limites de estresse e fadiga. Algumas até atingiram o que especialistas têm chamado de “burnout”.
Se dizem “perdidas”; e contam que muitas vezes fazem uma coisa pensando no que deveriam estar fazendo, no que deixaram de fazer e em infinitos cenários de “se”… ou seja: nunca conseguem se concentrar de fato no que estão fazendo. Não conseguem estar presentes com atenção plena para nada. Fazem de tudo; e nada bem feito.
Por isso que, como alternativa à gestão tempo e a todo este modo de pensar, ver e agir, temos apostado na ideia de consciência temporal, baseada no desejo de desacelerar.
Desacelerar não é ser devagar. Trata-se, sobretudo, de conseguir problematizar a velocidade; refletindo sobre quando ela faz sentido e quando não é necessária; é se propor a reconhecer quando estamos acelerados “no automático”, apenas porque a velocidade e a agilidade parecem ser atitudes socialmente desejáveis.
Equilíbrio, ritmos e temporalidades
A consciência temporal diz respeito a encontrar o que nós ativistas do movimento slow chamamos de “tempo giusto”; a pensar qual o tempo certo para cada coisa; e lembrar-se que este “certo” está relacionado com o que é importante para você e não necessariamente com o que é “correto” para o mundo.
Ou seja, a consciência temporal é uma visão que vem de dentro; e aposta na respiração, no autoconhecimento e em escolhas conscientes do uso do tempo.
Não se trata também de pregar que você deve largar tudo e ir fazer apenas “o que gosta”; “o que te realiza” ou o que “está conectado com o seu propósito”. Mas sim que se deve ter consciência do tempo que cada coisa ocupa em sua vida. Quanto tempo ocupa o trabalho? O lazer? A família? Os amigos? Os cuidados com você? E o quanto você gostaria de transformar a proporção de tempo que dedica a cada uma destas estas coisas? E, em geral, isso é um plano de longo prazo. Não imediato, como prometem as fórmulas de manejo do tempo.
Trata-se também de uma visão sistêmica, que reconhece que o problema não mora apenas no indivíduo, porque a aceleração social do tempo é uma engrenagem social que se converte em modos de agir e fazer presentes em diversas estruturas sociais que estruturam as nossas vidas, como por exemplo, as instituições de educação e trabalho, que ocupam tanto nosso tempo.
Ou seja: consciência temporal é também reconhecer os nossos tempos (tempos difíceis…); para reconhecer os seus tempos e ritmos.
Ter consciência temporal é se olhar com cuidado e atenção e fazer um exercício de escuta interior e das suas relações com o mundo para pensar: meu tempo é meu?
Em geral, este movimento reverbera em um reequilíbrio da distribuição do tempo nas várias esferas da vida (social, profissional, de lazer, das relações pessoais, etc); mas – ainda que não se converta necessariamente em alterações na agenda ou nas horas dedicadas a cada um destes “setores afetivos” – refletir sobre a relação com o tempo proporciona uma sensação de rédeas retomadas sobre a própria vida, de bem estar consigo mesmo e de uma relação mais saudável (e consciente) com as escolhas de uso do tempo. Em geral, isso tudo vem acompanhado de uma retomada relações afetivas, de mais convivência, mais presença e mais atenção plena.
Às vezes a mudança é apenas de atitude, mas os efeitos são imensos.
A reflexividade sobre o tempo conforta ao promover (1) a tomada de consciência de que este não é um problema só seu (porque é sistêmico); (2) a ideia de que você tem algum poder de transformação; (3) o poder de realizar algumas escolhas a partir das suas prioridades; (4) o questionamento de alguns parâmetros de urgência em prol do respeito a seus ritmos e do reconhecimento de diferentes temporalidades.
Por isso, a consciência temporal está conectada com a ideia de desacelerar. A gestão do tempo pode ajudar em alguns casos, mas em geral, parece ser uma armadilha.
* Jornalista, pesquisadora e professora, é uma das idealizadoras do Desacelera SP. Na Faculdade Cásper Líbero, desenvolve pesquisa sobre comunicação afetiva e jornalismo “slow”.