Um verdadeiro manifesto à desaceleração. Original publicado em: http://base.d-p-h.info/pt/fiches/dph/fiche-dph-8591.html
2009
Em 1986 Carlo Petrini funda na Itália o movimento Slow Food (alimentação lenta) para lutar contra a uniformização dos sabores, a má qualidade da comida rápida produto da globalização e da “cultura” McDonald’s. Em Paris, naquele mesmo ano, foi oficialmente constituído o movimento Slow Food (alimentação lenta)mediante a redação de um manifesto assinado por delegados de 15 países.
Mais tarde, em 1999, o movimento Slow estendeu-se à cidade e aos problemas urbanos. O lema era o elogio à lentidão, numa altura em que a mesma está pouco na moda, afogada sob os termos de eficácia, rentabilidade, crescimento. Este movimento trouxe à cidade uma nova abordagem para a mesma, que em vez de facilitar a rapidez, os intercâmbios estritamente funcionais e muitas vezes mercantis, dá a possibilidade aos habitantes de tomar o tempo de aproveitar sua existência, criar novos espaços propícios às relações humanas, a todo tipo de reflexão e de ação difíceis de realizar rapidamente, na urgência e no stress. Foi desta maneira que o movimento slow, que começou por interessar-se pela comida, estendeu-se à cidade, mas também à viagem, à educação, à cultura e até ao sexo!
O objetivo deste movimento vasto é de criar uma maior qualidade de vida para todos, de (re)encontrar a ideia de bem-viver.
Em que consiste uma cidade lenta?
O manifesto Cidade Lenta tem setenta recomendações e obrigações. Eis as principais:
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Valorização do patrimônio urbano histórico, evitando a construção de novos prédios.
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Redução dos consumos energéticos.
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Promoção das tecnologias ecológicas.
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Multiplicação dos espaços verdes e espaços de lazer.
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Limpeza da cidade.
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Prioridade aos transportes coletivos e outros transportes não poluentes.
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Diminuição do lixo e desenvolvimento de programas de reciclagem.
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Multiplicação das zonas reservadas aos pedestres.
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Desenvolvimento de comércio vicinal.
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Desenvolvimento de infraestruturas coletivas e equipamentos adaptados aos portadores de deficiência e para todas as faixas etárias.
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Desenvolvimento de uma verdadeira democracia participativa.
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Preservação e desenvolvimento dos costumes locais e dos produtos regionais.
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Exclusão dos O. G. M. (Organismos Geneticamente Modificados)
Os principais aspectos deste manifesto mostram que ele critica de fato a globalização dos intercâmbios que tem contribuído a uma uniformização crescente dos modos de vida e de pensamento pelo mundo inteiro. No entanto, mais além a desta constatação e da rejeição às cidades globalizadas, poluídas e que procuram a rapidez a tudo custo, o movimento propõe soluções concretas para instaurar um novo estilo de vida.
Para conseguir isto, o movimento Cidade Lenta baseia-se no nível local. Perante a globalização, os militantes das cidades lentas apostam no desenvolvimento local, seja a nível político através dos municípios, ou a nível econômico mediante acordos que favoreçam os produtos regionais.
Esta ideia baseia-se na vontade de criar maniras de viver juntos, compartilhar, revitalizar o tecido social perdido em cidades onde os vizinhos não se conhecem e onde as atividades sociais reduzem-se a uma relação quase inevitável com os comerciantes. Este objetivo do movimento Cidade Lenta pretende voltar a encontrar uma identidade própria para a cidade, que possa distinguir-se do exterior e estar reconhecida e apreciada do interior pelos seus próprios moradores.
Concretamente, as cidades que fazem parte do movimento Cidade Lenta promovem a utilização de tecnologias que melhoram a qualidade do meio ambiente e do tecido urbano, assim como a salvaguarda da produção local de alimentos e de vinhos para favorecer a identidade local da região. Além disto, Cidade Lenta procuram promover o diálogo e a comunicação entre os produtores e os consumidores. Cidade Lenta incentiva a produção de alimentos naturais e a utilização de técnicas respeitosas ao meio ambiente. A adesão à rede Cidade Lenta implica melhorias concretas da qualidade de vida dos habitantes. Eis alguns exemplos:
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Meio ambiente: instauração de controladores de ar; planos de redução do barulho; aplicação das novas tecnologias em matéria de reciclagem.
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Infraestruturas : desenvolvimento de zonas verdes; acesso garantido aos portadores de deficiência ; banheiros públicas de acesso livre; horários municipais coerentes ; desenvolvimento de ciclovias.
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Urbanismo: planos de reabilitação dos prédios históricos; utilização de produtos reciclados; valorização dos centros urbanos com caráter histórico.
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Valorização dos produtos locais: criação de “mercados de produtos locais”; rótulos de qualidade para agricultura biológica; melhoramento da qualidade da alimentação nos restaurantes escolares; apoio às manifestações culturais tradicionais.
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Hospitalidade: instalação de sinais internacionais; percursos turísticos guiados; presença de parques de estacionamento vigiados próximo dos centros das cidades; controle dos preços dos hoteis e restaurantes.
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Sensibilização: presença do logotipo “Cidade Lenta” sobre todos os documentos oficiais; cursos para despertar os gostos culinários nas escolas; promoção de programas como atividades de lazer para as famílias, ou visitas a domicílio para pessoas idosas e doentes.
Em suma, para entender os objetivos deste movimento, é interessante citar a Carta que afirma: “Estamos à procura de cidades animadas por pessoas que tiram o tempo para desfrutar de certa qualidade de vida. Cidades nas quais se aprecia a qualidade dos espaços públicos, dos teatros, das lojas, dos cafés, dos albergues, dos prédios históricos e de paisagens não poluídas. Cidades onde o conhecimento artesanal é utilizado cotidianamente e nas quais a lentidão, a passagem das estações se reflita na disponibilidade dos produtos locais conforme a época do ano, cidades onde a alimentação é sadia, onde a maneira de viver é sadia, enfim onde se pode usufruir a vida, temas que devem ser fundamentais no seio da comunidade.”
Como ser uma cidade lenta?
A associação Cidade Lenta é aberta às cidades de menos de 50.000 pessoas. Para ser membro, uma cidade deve atingir a pontuação de 50% da autoavaliação sobre os objetivos de Cidade Lenta. Se for aceita, a cidade deve pagar uma contribuição anual e aplicar os princípios da Carta. Pode então mostrar com orgulho o logotipo de Cidade Lenta: um caracol levando nas suas costas uma cidade cheia de cores. A intenção de colocar em rede as cidades que aderem ao projeto corresponde à vontade de verificar se os compromissos assumidos são de fato respeitados. A rede dispõe para isso de um órgão de inspetores que fiscalizam periodicamente o cumprimento das obrigações. Existem agora redes Cidade Lenta nos seguintes países: Áustria, Reino Unido, Austrália, Alemanha, Coréia do Sul, Noruega, Espanha, Polônia e evidentemente Itália, com um total de setenta cidades italianas e mais de vinte outras no mundo, até na Nova Zelândia.
Cidade Lenta : Uma aplicação concreta do direito à cidade
Uma das ações principais de uma cidade lenta é a participação dos seus habitantes. Cada um é chamado a fazer parte deste projeto, num espírito de abertura, de tolerância para com o outro e, evidentemente, respeitando o ritmo particular que toma a partilha de ideias e a criação em grupo de projetos e propostas novas, ou seja, lentamente. Assim, os militantes do movimento acreditam que tanto a democracia e a educação como a tomada de decisão coletiva requerem lentidão.
Além disso, a ecologia, o respeito à natureza, a relação entre seres humanos e a natureza correspondem a uma escala diferente daquela dos seres humanos na sua dimensão individual. Por isso, o elogio da lentidão implica também em valorizar o tempo indispensável à reflexão e à deliberação. O fato de que a participação seja um aspecto inerente à criação de cidades lentas é um ponto muito interessante para relacionar o movimento Cidade Lenta e o direito à cidade.
A meu ver, o movimento Cidade Lenta pode ser considerado como uma experiência acabada do direito à cidade. Com efeito, o tema da participação, que está presente na Carta de Cidade Lenta, é também um ponto fundamental da Carta Mundial do Direito à Cidade. A constatação que os cidadãos devem recuperar a cidade, reconquistá-la, não deixá-la nas mãos das grandes empresas, dos carros, das fábricas poluentes, e das grandes empresas imobiliárias, mas pelo contrário, lutar para impor uma outra visão da cidade, compartilhada, acolhedora e cheia de lugares públicos onde é possível se encontrar. O tema da participação não é o único aspecto do direito à cidade que a rede Cidade Lenta desenvolve e implementa: a vontade de criar uma identidade, de ser feliz e orgulhoso de onde se vive, este sentimento de pertencer a um lugar constitui também um ponto forte do direito à cidade.
O decrescimento aplicado à cidade
Parece-me importante mostrar aqui a relação entre o movimento Cidade Lenta, o direito à cidade e o decrescimento. O decrescimento, se é possível definir este paradigma-movimento-arte de viver em algumas palavras, chama atenção para agir sem perder mais tempo na luta contra os múltiplos efeitos negativos do sistema capitalista, do neoliberalismo e do crescimento. Primeiro, trata-se de questionar o mito que domina atualmente, o pensamento único que pretende fazer dos conceitos de crescimento, progresso, desenvolvimento (e das consequências concretas ligadas aos mesmos) certezas inevitáveis, sem alternativas possíveis nas nossas vidas. Mas estas existem como o mostra também o direito à cidade: o decrescimento é uma bandeira de luta para defender a possibilidade de que outras relações Norte-Sul, outra economia, outras relações sociais, outras relações entre ser humano e meio ambiente e outras cidades são possíveis. Portanto, é interessante poder aprofundar as experiências já implementadas, estendê-las e ampliar as reivindicações apropriando-se do conceito e do lema do direito à cidade. Isto permitiria confrontar estas experiências com outras em diferentes regiões, como a América Latina por exemplo.
Está claro que este movimento Cidade Lenta é antes de tudo a obra de militantes e de certos políticos sensibilizados aos temas ecológicos e sociais, mas é interessante notar o esforço aparente do atual presidente dos Estados- Unidos da América, Barack Obama, para não continuar com a expansão urbana. Com efeito, o novo governo afirmou que o crescimento urbano não é a opção para remediar os problemas sociais e econômicos das cidades num contexto de crise. É neste sentido que uma nova metodologia de planejamento urbano está sendo organizada, seguindo o lema “Reduzir para sobreviver” (“Shrink to Survive”). Um dos encarregados desta missão chama-se Dan Kildee, que é o tesoureiro do bairro de Genesee na cidade de Flint, uma das cidades mais pobres do país. Ele tem implementado este sistema para esta cidade e procedeu à destruição de habitações em áreas residenciais e zonas industriais abandonadas por causa da crise. Esta nova visão do planejamento urbano pretende promover cidades menores, a fim de poder dedicar mais meios para o desenvolvimento social, poupando, por exemplo, as despesas de coleta de lixo (os empregados andavam muitas vezes quilômetros sem encontrar nenhum coletor de lixo). Neste sentido, a administração Obama prevê atualmente a aplicação deste sistema em cinquenta cidades do país na região dos antigos centros industriais que foram particularmente afetados pelas várias crises e onde certos bairros estão completamente abandonados. Está previsto a substituição destes bairros abandonados por parques públicos e florestas.
Estas várias experiências são muito interessantes e constituem uma pequena esperança no panorama de cidades tentaculares infectadas pela pobreza e as desigualdades. No entanto, deve-se ter cuidado para não criar cidades museu que não deixam a possibilidade de que todos se expressem. De fato, o movimento Cidade Lenta adverte que uma cidade lenta não deve fechar-se, mas sim trabalhar para promover o nascimento de novas solidariedades entre territórios, entre os bairros, entre as cidades e os subúrbios, entre as cidades e o meio rural e, claro, entre as nações e os continentes. Além disso, como afirma Paolo Saturnini, membro de Cittaslow internacional e ex-prefeito de Greve, deve-se evitar o crescimento desmedido da cidade, levando a cabo uma política de urbanização baseada na limitação de novas edificações e, sobretudo, na reutilização dos prédios existentes para novas funções. Isto é de fato um aspecto que poderia ser criticado nos projetos “cidades reduzidas” (“shrink city”) da administração Obama. Esta perspectiva e as ações que podem resultar, por exemplo, na destruição de habitações desocupadas, não deve fazer esquecer o aspecto trágico destes bairros abandonados. Trata-se de bairros periféricos onde famílias de classe média baixa tinham comprado suas casas, endividando-se durante muitos anos, que não conseguiram continuar pagando por causa da crise, e cujas casas foram vendidas e hipotecadas para reembolsar as suas dívidas. Isto constitui uma verdadeira tragédia social criada pelo sistema capitalista que provocou esta crise. Portanto seria bom não se esquecer disto quando os políticos apresentam agora projetos de construção de espaços verdes nestes mesmos lugares. Parece assim que, mais do que destruir casas, é urgente refletir claramente sobre nossas concepções de cidade e, num plano geral, o sistema que nos rege, a fim de construir uma sociedade mais justa.
Palavras-chave
condições de vidadesenvolvimento sustentávelagricultura sustentávelimpacto sobre o meio ambientemeio ambiente
dossiê
Notas
Fonte
Referências
Cittaslow Charter: www.cittaslow.org.uk/images/Download/cittaslow_charter.pdf
Cittaslow Movement: www.cittaslow.net
Habitat International Coalition. “El crecimiento no es la opción: hay que achicar las ciudades!”. 2009. www.hic-net.org/articles.php?pid=3124.
Habitat International Coalition. “Des villes lentes, vite!”. Le Journal de la Décroissance, no. 47. March 2008. Décroissance et villes lentes: www.hic-net.org/news.php?pid=3146.
Habitat International Coalition. “La ville lente c’est possible ici et maintenant”. Le Journal de la Décroissance, no. 47. March 2008. www.hic-net.org/news.php?pid=3147.
Habitat International Coalition. “CittaSlow contre Ecopolis”. Le Journal de la Décroissance, no. 47. March 2008. www.hic-net.org/news.php?pid=3148.
Leonard, Tom. “US cities may have to be bulldozed in order to survive”. Telegraph.co.uk. June 12, 2009. www.telegraph.co.uk/finance/financetopics/financialcrisis/5516536/US-cities-may-have-to-be-bulldozed-in-order-to-survive.html.
HIC (Habitat International Coalition) – General Secretariat / Ana Sugranyes Santiago Bueras 142, Of.22, Santiago, CHILI – Tel/fax: + 56-2-664 1393, + 56-2-664 9390 – Chile – www.hic-net.org/ – gs (@) hic-net.org