Escritores e pesquisadores compartilham expectativas para 2024

Michelle Prazeres, do Instituto Desacelera, foi uma das entrevistadas da reportagem de capa da Revista Ela, do jornal O Globo, em que falou que devemos pensar em um novo ano menos acelerado, mas devemos fazer isso de forma coletiva e sistêmica, pois prescrever desaceleração em contextos desiguais sem considerar as diferentes experiências temporais em função de marcadores sociais, é cronomeritocracia e reforça as desigualdades.

Leia a reportagem completa aqui ou abaixo:

Pé quente, cabeça fria (dou-lhe uma).” Os versos de Gilberto Gil imortalizados pelos Doces Bárbaros soam como um mantra adequado para esta noite de réveillon. Dois mil e vinte e quatro não configura uma mudança de década nem um ano que se inicia após um longo período traumático, como fizemos no ano passado, ao tentar virar a página de uma pandemia. Mas há muito trabalho pela frente, entre guerras mortais e uma crise climática sem precedentes. Um tanto de serenidade, portanto, cairá bem nessa jornada.

E não é papo de hippie. A partir de suas observações nos consultórios e nas salas de aula, o psicanalista e professor da Universidade de São Paulo Christian Dunker afirma que a energia vigente está mais ligada à ideia de recomeço do que de fim. “Basta observarmos que não ouvimos tantas reclamações do tipo ‘este ano não acaba nunca’, como foi na virada anterior”, compara. “Estamos mais orientados para o futuro do que para o passado. Há um clima de esperança no ar, com uma aposta de ‘vou me jogar no mundo e ser acolhido’”.

É possível também, de acordo com o psicanalista, que as pessoas estejam mais interessadas em mudanças reais na busca por qualidade de vida e relações mais consistentes. “Para o que vivemos anteriormente, o Tinder estava bom. Agora, não mais”, aposta.

E é por isso que tirar o pé do acelerador tem se mostrado uma necessidade tão concreta quanto urgente. Se havia uma expectativa de que o mundo fosse mais acolhedor após a pandemia, velhos problemas voltaram a nos assombrar com intensidade ainda maior. A consultoria Timelens verificou, por exemplo, que as buscas no Google por “sintomas de ansiedade” cresceram 71% nos últimos dois anos, assim como consultas acerca do termo “burnout” aparecem acima dos níveis pré-pandêmicos, com mais de 14 milhões de pesquisas do tipo na ferramenta só em 2023.

“Estamos mais orientados para o futuro do que para o passado. Há um clima de esperança no ar” Christian Dunker, psicanalista

Ao mesmo tempo, as pessoas parecem mais atentas à ideia de finitude. Nos levantamentos feitos pela empresa, chamou a atenção o fato de serem identificadas 522 mil menções a “o mundo vai acabar” nos últimos dois anos, sendo que 42% delas estão concentradas neste segundo semestre, quando os alertas sobre o aquecimento global começaram a soar mais alto. Por outro lado, é aí que a pesquisa encontrou um paradoxo um tanto poético: os verbos mais usados nas conversas sobre o tema nas redes foram justamente “viver” e “amar”. Ou seja, parece que sabemos muito bem como queremos aproveitar a vida e o que realmente nos importa. “É como se os brasileiros se dessem conta de que, na ausência de controle sobre o futuro, que parece cada vez mais incerto, o jeito é viver ao máximo o presente”, analisa a diretora de insights da Timelens, Estela Brunhara.

“Pé quente, cabeça fria (dou-lhe duas).” Se o tempo parece curto, tratar as metas pessoais com os pés bem firmes no chão ajuda a controlar a ansiedade. Autora de “O poder do reset” (Bestseller), Paula Abreu cita uma pesquisa da University of Scranton para lembrar o quanto o assunto é sério. Segundo o estudo, apenas 8% das pessoas alcançam as metas de ano-novo, e muita gente abandona as resoluções até meados de fevereiro.

Por isso, ela ensina, objetivo bom é aquele que dá para colocar na agenda. “Em vez de prometer ‘vou ser mais saudável’, defina caminhar, por meia hora, três vezes por semana”, ilustra. “Para mantermos a nossa motivação, precisamos estabelecer passos pequenos. Conforme cumprimos as resoluções, nos entusiasmamos mais.”

Com o mundo tão apressado, é importante também não perder de vista que desconectar-se é um direito. Fundadora do Instituto Desacelera, Michelle Prazeres tem mostrado, por meio de suas pesquisas e eventos, o quanto o assunto deve ser tratado como uma necessidade de primeira ordem. “Precisamos estabelecer uma luta sistêmica para que governos e empresas garantam tal condição”, afirma. “Caso contrário, acabamos gerando mais frustração entre aqueles que não conseguem descansar.”

Feita a ressalva, ela reconhece o quanto ações individuais podem ajudar na tomada de consciência diante de um sistema que insiste em glamourizar o excesso de trabalhos e atividades. “Se você percebe dinâmicas muito individualizantes em casa, com uso excessivo de celulares, crie momentos de convivência. Lembre-se também de se manter em contato com quem é importante. Leve um bolo àquela vizinha querida, cultive relações. Isso tudo já pode ser o começo”, recomenda.

“Pé quente, cabeça fria (dou-lhe três).” O elo com as pessoas próximas citado por Michelle mostrou-se, especialmente em 2023, um valor absoluto para o professor e escritor José Henrique Bortoluci. O autor do elogiado “O que é meu” (Fósforo), em que reúne depoimentos e memórias de seu pai, foi surpreendido pela morte dele, um dia após participar da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, no mês passado. “Tive um ano de muitas construções e alegrias, mas também carrego dificuldades para 2024”, diz, sobre o luto. Porém, saber que dedicou tanto tempo ao pai, a ponto de transformar essa relação em literatura, não só o conforta como indica caminhos por onde seguir. “Boa parte das nossas realizações não estão nos grandes feitos e projetos, mas nas nossas relações afetivas. Aprendi muito com meu pai e vou seguir aprendendo com as pessoas.”

“Boa parte das nossas realizações não estão nos grandes feitos e projetos, mas nas nossas relações”, José Henrique Bortoluci, escritor

Por falar nas coisas simples da vida, um olhar mais criterioso ao redor pode nos revelar onde encontrar conforto no próprio cotidiano. A cantora e escritora Letrux, por exemplo, faz isso com idas frequentes à praia para mergulhos que chama de “batismos”. “Uma das dádivas de morar no Rio de ‘Janeura’ é a proximidade com o mar, que talvez um dia nos engula. Medo!”, comenta a carioca, que se mudou para Copacabana após a pandemia. “Enquanto isso, vou me usufruindo dele da melhor maneira possível. Quando sei que minha semana vai ser caótica, estabeleço que preciso mergulhar não importa a saga que seja.”

Que tal pensar, então, em que águas você gostaria de mergulhar em 2024? Definidas as prioridades, é só seguir a recomendação de Gil na canção: “Saia despreocupado. Você pode conquistar o mundo dessa vez”.