Direito à desconexão

Leia a matéria do desinformantebr para a qual concedi entrevista sobre direito à desconexão. Original publicada aqui.

Quarta-feira de cinzas, dia de descanso e de recuperar o corpo da folia do carnaval – o glitter mesmo só vai sair da pele daqui a algumas semanas. Mas para além do suco verde, você já pensou em fazer também um “detox” do mundo virtual? Aproveitar o momento e repensar sua relação com as redes sociais e aplicativos de mensagens? O *desinformante conversou com a pesquisadora e fundadora do movimento “Desacelera SP” Michelle Prazeres sobre o assunto e tem algumas dicas de como começar o ano mais leve no mundo digital.  

“É necessário sim a gente fazer um detox do mundo virtual de vez em quando, especialmente essas pessoas que vivem nesse regime 24/7, que é o regime motor da sociedade do cansaço” pontua Michelle. Mecanismos como desativar notificações, escolher momentos no dia para ver suas mensagens, não se sentir obrigado a responder instantaneamente quando não há urgência são dicas importantes que auxiliam na reflexão sobre nossa relação com o mundo virtual.

Dicas

  • 1- Desativar notificações
  • 2 – Escolher um momento do dia para ver as mensagens
  • 3 – Não se sentir obrigado a responder instantaneamente quando não há urgência

A pesquisadora, entretanto, faz um alerta sobre a armadilha que se esconde no discurso do “detox” programado. Para ela, “é muito comum que esse discurso seja apropriado pelas engrenagens do capitalismo para dizer assim, bom, ‘faça uma pausa para ter mais fôlego para continuar trabalhando’. E eu gosto muito de dizer que o detox ou a pausa não têm que existir em função da produtividade. Eles têm que existir e ponto. A gente tem direito a descansar porque a gente é gente. A gente tem direito de se desintoxicar das tecnologias porque a gente é gente, não porque a gente tem que ficar melhor para trabalhar mais”.

Construir uma relação saudável com as redes sociais e com o mundo virtual é possível, mas depende de escolhas individuais, condições sociais e construções culturais que permitam que isso aconteça. Não pode ser tratada exclusivamente como uma questão individual, dependente somente da “força de vontade” da pessoa em assumir uma postura diferente frente a hiperconectividade que a sociedade nos impõe.

“O que a minha pesquisa ao longo desses anos me mostrou é que essa pauta do bem-estar e da saúde mental é uma pauta muito individualizada, que tenta jogar para as pessoas a responsabilidade em relação a essas coisas”, alerta Michelle Prazeres. “Uma pessoa branca, rica, moradora de São Paulo, que trabalha na Faria Lima e anda de helicóptero, tem as mesmas 24 horas de uma mãe solo preta, periférica?” provoca, para afirmar que “quando você diz assim ‘arrume tempo na sua agenda para desacelerar’ ou ‘desconecte porque isso é uma escolha’, você está assumindo que essas pessoas têm experiências temporais semelhantes ou iguais, e a gente sabe bem que não é verdade.”

É fundamental considerar esses marcadores sociais e também “o fato de que a gente vive numa cultura que o tempo todo tenta dizer para a gente que a tecnologia é legal, que a tecnologia é boa, estar disponível, acessível online, ter conectividade, ter agilidade são coisas boas. E é essa cultura que eu associo à cultura da velocidade, a cultura da aceleração”, diz Prazeres.

A pesquisadora alerta também para a perversidade da cultura do “glorify busy”, a de “glorificar o ocupado”, muito comum no universo do trabalho. Nós vivemos numa sociedade que valoriza o progresso, o tecnológico, a velocidade e valoriza igualmente a pessoa que é ágil, veloz, hiper disponível, “quando, na verdade, pelas tendências do bem-estar, do bem viver, da saúde mental, as pesquisas estão mostrando que a gente está se desumanizando e que as pessoas estão adoecendo por causa dessa hiper disponibilidade, especialmente relacionada ao mundo do trabalho e do consumo”.

O “direito à desconexão”

Nomenclatura jurídica, o “direito à desconexão” já foi usado em casos julgados na Justiça do Trabalho relacionados a temas que envolviam o uso de tecnologia (como mensagens e e-mails) fora da jornada de trabalho, e como isso deveria ser compreendido na relação laboral.

Para Michelle Prazeres, essa concepção deve se alargar e se afirmar na premissa de “todo mundo deve ter o direito a pausar, todo mundo deve ter direito a descansar, todo mundo deve ter direito a se desconectar”.

Na contemporaneidade, essa relação entre tempo, disponibilidade, conectividade deve receber atenção e certamente se mostra como um dos principais desafios sociais a serem enfrentados e estudados. O “direito à desconexão” ainda é visto como algo secundário, até mesmo por setores progressistas, mas Michelle Prazeres acredita que “a gente está vendo que essa agenda toca muito na questão da saúde pública e toca muito também nas questões de outros direitos, como o da educação e o da cultura”.

A fundadora do movimento Desacelera SP defende o que ela nomeia de “letramento temporal”, uma abordagem pedagógica sobre a consciência em relação ao tempo, e que deveria caminhar conjuntamente às iniciativas de letramento digital e alfabetização midiática para auxiliar no enfrentamento dos desafios dos dias atuais.