Vivemos tão tomados pelas exigências de eficiência da vida moderna, sentados diante de uma tela de computador ou correndo pra lá e pra cá, que passamos a associar a postura deitada à falta de élan para enfrentar desafios, à vagabundagem, apatia ou preguiça. Por Silvana Assumpção.
“Se você está deitado neste exato momento, não há necessidade de se desculpar.” Com essa agradável licença o alemão Bernd Brunner começa um minucioso tratado sobre a posição na qual passamos considerável parte de nossas existências, mas com a qual somos um bocado injustos. Vivemos tão tomados pelas exigências de eficiência da vida moderna, sentados diante de uma tela de computador ou correndo pra lá e pra cá, que passamos a associar a postura deitada à falta de élan para enfrentar desafios, à vagabundagem, apatia ou preguiça. Achamos muito mais digno de respeito nos mostrar atarefados do que descansando, e geralmente nos envergonhamos de ser apanhados deitados “fora de hora”, mesmo em momentos de folga.
Brunner, um escritor de 50 anos de idade que vive entre Berlim e Istambul, não somente perdoa “a falta” como explora os mais originais e criativos ângulos (sem trocadilho!) do ato de nos deitarmos em um livro muito curioso, não traduzido em português, que em inglês leva o título “The Art of Lying Down – A Guide to Horizontal Living” (“A Arte de Deitar – Um Guia da Vida na Horizontal”). A epígrafe da obra é de Groucho Marx (1890-1977): “O que não pode ser feito deitado, não vale ser feito”. Mas seu conteúdo vai muito além da blague do comediante. O autor revira até os bolsos dos coletes da história, filosofia, ciência e literatura, das artes e das técnicas – como em um capítulo sobre a evolução do colchão – em busca de referências para suas especulações. Brunner é, aliás, mestre em combinar certo absurdo temático com a mais meticulosa investigação. Se traduzidas em português, algumas de suas obras teriam títulos mais ou menos assim: “Uma História Concisa dos Ursos”, “Como o Mar foi Parar na Sala – a Invenção do Aquário” e “A Lua – História de um Fascínio”.
Em “A Arte de Deitar”, nos damos conta de que a gravidade nos empurra em direção a Terra e passamos quase todo o tempo “negociando” com ela. Deitamos (ou adoraríamos fazer isso, se pudéssemos), sempre que nosso corpo se torna pesado demais para suportarmos. Se for hora de dormir, bem. Se não for, exceto talvez nos países em que a siesta é uma tradição tolerada, estamos lascados. Mas até o sono ao qual deveríamos idealmente dedicar oito horas por dia é alvo de alguma suspeita. Brunner sugere que dormimos regularmente tantas horas contínuas não por razões biológicas. Se a moderna racionalidade do trabalho não nos tivesse moldado para dividir nosso tempo entre horas produtivas e horas de repouso, sempre mais ou menos simultâneas para todos – porque assim a produtividade social é maior – provavelmente nos entregaríamos a um delicioso soninho (ou meramente espicharíamos o esqueleto) e voltaríamos à atividade várias vezes ao dia.
Ele deve estar certo – basta pensar nas inúmeras cenas já registradas do cotidiano de nossas aldeias indígenas. Enquanto alguns membros da tribo aparecem ocupados em alguma tarefa, sempre há outros, ao mesmo tempo, escarrapachados em redes ou no chão. No centro da cidade de São Paulo, por sinal, atualmente se multiplicam os locais onde, a um preço módico, o alongamento tão desejado pode ser satisfeito por períodos curtíssimos no meio da jornada de trabalho. Certa flexibilidade social em relação ao deitar também se manifesta há vários anos na moda internacional de bares, restaurantes e lounges em que as mesas e cadeiras convivem, ou foram substituídas, por amplas superfícies estofadas para os clientes se largarem de corpo inteiro. É bem conhecido, aliás, o hábito dos antigos gregos e romanos de se banquetearem deitados, com certeza algo comum também aos povos orientais e, em geral, a todas as civilizações antigas.
Introspecção aguçada
O fato é que deitar não custa nada e pode ser muito valioso para o corpo, o pensamento e as sensações. Ao nos deitarmos entramos numa sintonia muito particular, e por vezes altamente criativa, com nós mesmos. O sentido do tato se ativa por toda a pele, e não é à toa que geralmente fazemos sexo deitados – há outras posições muito boas, claro, mas quem irá negar que o sexo quase sempre convida a nos alongarmos na horizontal? Repare: é quando deitados que adquirimos a maior percepção de cada parte e da extensão completa de nosso corpo, não necessariamente a real, mas sensorialmente a mais verdadeira. O escritor alemão Hermann Broch (1886-1951) faz uma descrição muito vívida desse processo num trecho de seu romance “A Morte de Virgílio”, incluído no livro de Brunner e aqui livremente traduzido do inglês:
“Ele virou de lado, suas pernas um pouco encolhidas, a cabeça descansando no travesseiro, o quadril pressionado contra o colchão, os joelhos dispostos um sobre o outro como se fossem dois seres separados dele, e muito longe, na distância, repousavam também seus tornozelos e calcanhares. Quantas vezes, oh, quantas vezes no passado atentara para o fenômeno de estar deitado! (…). O escritor chinês Lin Yutang (1895-1976) compartilhava dessas impressões e sentia que, quando deitado, a realidade se revestia de um halo de fantasia poética, como se transparecesse por trás de um vidro ou de uma cortina de contas. E assim desfocada, para ele seria mais parecida, e não menos, com a vida real.
Dependendo do tipo de música, ouvir deitado também tende a ser uma experiência muito mais profunda, porque a posição exacerba a introspecção e a concentração. Muita gente também, mal pega nas mãos um livro ou revista, já vai se esticando para desfrutar da leitura na posição que consome menos energia do corpo e deixa a mente flanar com mais liberdade. Igualmente, para muitos, escrever, desenhar ou realizar outras atividades possíveis na atitude reclinada (para Brunner, reclinar-se é o mesmo que deitar, desde que as pernas estejam elevadas) favorece a imaginação.
É comum aconselhar-se aos profissionais que trabalham em casa, jornalistas, escritores, tradutores, artistas, a se levantar bem cedo, se vestir e calçar como se fossem sair. Seria um bom truque para manter a disciplina profissional, mas esses conselhos são discutíveis. Uma resenha feita pela jornalista americana Ruth Graham sobre o livro de Brunner começa assim:“Estou escrevendo essa resenha deitada em minha cama, às 10 da manhã de uma quarta-feira, e adorando isso. Frequentemente passo manhãs inteiras dessa maneira, especialmente no inverno, e minha produtividade vai muito bem. Na verdade, exatamente por não gastar minhas melhores horas de pensamento do dia me embelezando e me compondo, arriscaria dizer que trabalho com mais eficiência deitada”.
De fato, é impressionante como às vezes aqueles primeiros pensamentos da manhã, mal despertamos, trazem súbita iluminação sobre um problema que levamos para a cama na véspera. Mas se nos pusermos de pé num salto para fazer nossa higiene e nos arrumar, essa bolha de lucidez, tal como as lembranças dos sonhos, pode se esvair sem deixar rastro. É bem conhecida dos leitores de Marcel Proust (1871-1922) a cama de latão com dossel que constituía parte essencial de seu mundo mental e onde a doença o forçou a escrever grande parte de sua obra-prima, “Em Busca do Tempo Perdido”. No quarto abafado de seu apartamento em Paris, revestido por cortiça nas paredes, Proust sonhava acordado e sentia deitado, muitas vezes naquele mágico limiar entre o sono e a vigília, uma conexão mais direta com suas memórias.
Gênios “horizontais”
O jornalista e escritor americano Truman Capote (1924-1984) era outro que escrevia deitado. “Sou um escritor completamente horizontal”, disse certa vez. Rabiscava sempre a lápis a primeira versão de seus textos, e achava impossível ter ideias sem ser espichado na cama ou num sofá. Já Edith Wharton (1862 –1937), outra americana, autora de “A Era da Inocência”, não saía do leito para escrever porque não queria se espremer dentro de um espartilho – tortura indispensável à elegância feminina em sua época. Achava que seus pensamentos fluíam melhor sem ele, e era tão chegada à própria cama que nela comemorou seus 70 anos, com um bolo cheio de velinhas sobre as cobertas que, por sinal, num desfecho espetacular, acabaram pegando fogo…
Outro com gosto ainda mais peculiar foi o poeta inglês William Wordsworth (1770-1850). Não só escrevia deitado, como na mais completa escuridão. Se o papel escorregava por algum motivo, pegava outro e começava tudo de novo. O ato de deitar também atraiu o pensador social inglês Gilbert Chesterton (1874-1936), que chegou a escrever um ensaio sobre o assunto ou talvez, melhor dizendo, sobre o “ficar” na cama (“On Lying in Bed”). Começa imaginando como seria maravilhoso existirem lápis de cor tão longos que nos permitissem desenhar no teto estando deitados. E a certa altura reflete que, com certeza, foi por estar entregue a este antigo e honrado hábito que Michelangelo (1475-1564) teve a ideia de pintar no teto da Capela Sistina um drama que transcorria no próprio céu.
Atualmente, consta que o filósofo e esquisitão esloveno Slavoj Zizek também já foi visto a dar palestras deitado na cama. E os exemplos de quem “funciona” melhor deitado poderiam ir quase ao infinito se juntássemos aos colchões e sofás, aos tapetes, às areias e aos gramados, também os divãs dos psicanalistas e – fundamental –, as banheiras cheias d´água. Vinicius de Moraes (1913-1980), por exemplo, só encontrava conforto assim no fim da vida, e reclinado na banheira recebia os amigos. O ex-diretor de redação de O Estado de S. Paulo, Ruy Mesquita, morto em 2013, também não prescindia de algumas horas de manhã cedo recostado numa banheira cheia, despachando de lá por telefone com os editores do jornal. Os tipos “horizontais” não faltam nem na ficção. Quem acompanha a série de TV “The Mentalist” sabe que Patrick Jane, o herói detetive, mandou colocar na delegacia onde trabalha um sofá velho e muito gasto, porque é deitado nele que matuta as soluções dos crimes.
Certos viajantes célebres, reis, filósofos, poetas, também ocupam uma parte do livro de Brunner, uns porque só viajavam deitados em coches ou trens, achando que assim a paisagem se revelava melhor, e outros porque não saíam da cama nem nos hotéis. Era o caso de Clara Mundt (1814-1873), autora alemã que escrevia principalmente ficções históricas sob o pseudônimo de Louise Mühlbach. Foi aboletada num leito bem alto do famoso Hotel Shepheard, no Cairo, que conheceu a cidade apenas pelo enquadramento da janela de seu quarto, se deliciando com o espetáculo como num filme. Mas a história de deitar mais engraçada que conheço pertence à crônica de minha própria família. Me permitam contar:
Minha tia-avó Grauben do Monte Lima (1889-1972) foi uma artista que começou a pintar aos 70 anos de idade, logo se revelando em aclamadas exposições no MAM do Rio de Janeiro e todas as melhores galerias da cidade. Ela talvez não conhecesse a mania de Truman Capote e pintava sentada ao cavalete, mas lembro-me de, ainda menina, ouvi-la dizer: “Sou uma mulher horizontal!” Isso porque, desde mocinha, não conseguia vencer um dia sem fazer vários intervalos de alguns minutos deitada, e ai de quem a incomodasse nesses momentos. Ocorre que tia Grauben também foi uma das primeiras mulheres funcionárias públicas do Brasil, sendo admitida no Ministério da Fazenda no Rio de Janeiro ainda na década de 1910. Tudo correu bem no dia da chegada, mas ao perceber que não havia na repartição uma só superfície onde se alongar, quando lhe bateu aquela irresistível vontade, não hesitou. Disse ao chefe que sem se deitar um pouquinho depois do almoço, pelo menos, não ia dar para trabalhar.
Assim confrontado pela possivelmente única criatura do sexo feminino em todo o prédio, o homem não teve saída. Dias depois, numa cena que visualizo perfeitamente num daqueles adoráveis curtas de Chaplin, da mesma época, um sofá adentrava o recinto onde ficava a nova funcionária e era posto em local ajeitado, exclusivamente para seu uso. Reza a crônica familiar – uma vez que não há como confirmar fatos tão antigos com fontes oficiais – que tia Grauben gozou dessa exclusiva regalia no ministério por toda sua carreira. Que foi bem longa, já que se aposentou lá. Quem sabe se, para clarear a mente e até fazer seu trabalho melhor, você também não está precisando de um bom sofá?
* Texto publicado originalmente na revista The President, da Custom Editora, em dez. 2014