Humanizar a comunicação: reivindicar e pesquisar práticas comunicativas humanizadas

Leia o artigo de Michelle Prazeres e Carol Messias para a Revista Coaching Brasil. Nele, as pesquisadoras narram o percurso de investigação do projeto Humanizar a Comunicação. O original está publicado aqui.

“[Comunicar] trata-se de fazer o outro chegar perto da emoção e da força do vivido.” Ciro Marcondes Filho (2019, p. 26)

Quando observamos a circulação do termo “comunicação” acompanhado de adjetivos que reforçam suas qualidades subjacentes, entendemos que pode haver uma ponta de denúncia e outra de reivindicação. Denúncia de uma comunicação mecânica, automática e funcionalista que, adotada em excesso e sem reflexão, a instrumentaliza e embarga suas qualidades relacionais e humanas. Reivindicação, pois especialmente neste momento em que nos comunicamos nos mundos físico e digital, com inteligências artificiais e tecnologias pautando ou sendo veículos da parte de nossas ações comunicativas, é importante não perder de vista a serviço de quê e de quem está a comunicação.

A comunicação autêntica, como expressão, está presente em diversos estudos de: Educação e Linguística (desde a década de 1970), em análises de métodos de ensino que discutem questões em torno da “naturalidade” e do “artificialismo” dos materiais e exemplos usados em sala de aula; Psicologia com foco em relações familiares; e a partir dos anos 2000 no estudo de gestão organizacional com abordagem relacional. O sociólogo francês Philippe Zarifian conceitua o termo “comunicação autêntica” como “um processo pelo qual se instaura uma compreensão recíproca e se forma um sentido compartilhado, resultando em um entendimento sobre as ações que os sujeitos envolvidos são levados a assumir juntos ou de maneira convergente” (Zarifian, 2009, p. 165). Já no contexto brasileiro, desde 2015, a comunicação autêntica passa a se conectar com o conceito e a abordagem da Comunicação Não Violenta (CNV), com a difusão do trabalho da coach e mediadora Carolina Nalon.

Entendemos este chamado à autenticidade como um pedido de inclusão (resgate) da nossa subjetividade na comunicação e, portanto, de nossa humanidade em sua complexidade no modo como interagimos conosco, com as pessoas e com a sociedade.

Partilhar e transferir são os dois caminhos de sentido que a comunicação vem trilhando de sua origem latina communicare, os quais se bifurcam em abordagens m ais dialógicas e relacionais e outras mais informacionais e instrumentalizadas (Lelo, 2016). Será que é possível chegar a um ponto de encontro entre essas acepções etimologicamente divergentes? As expressões “comunicação autêntica” e “comunicação humanizada” nos sugere que sim.

Quando verdade, legitimidade e humanidade são convocadas nessas expressões, é porque a comunicação perdeu seu rumo em algum lugar dessa história. E temos algumas pistas hoje de onde ela ainda se perde: nas fake news, na exigência de produção e transmissão de conteúdo acelerada, nas relações tóxicas, abusivas pessoais e profissionais que usam comunicação como veículo de controle e punição, no nó na garganta que tantas vezes carregamos e não encontramos meios de desatar.

Trilhando o caminho da comunicação como diálogo, entendemos a comunicação como uma prática essencialmente humana. Então, faz sentido usar um pleonasmo como “humanização da comunicação” ou “comunicação humanizada”? Em 2019, começamos um percurso de pesquisa para responder a essa inquietação. Nossa intuição dizia que sim; fazia sentido pensarmos em modos de humanizar um processo que é fundamentalmente humano, mas que vem sendo campo de atravessamentos em função do contexto pós Web 2.0 e Quarta Revolução Industrial. Nesse contexto, relembramos a especificidade da comunicação no sentido que aponta Muniz Sodré:

Assim como a biologia descreve vasos comunicantes ou a arquitetura prevê espaços comunicantes, os seres humanos são comunicantes, não porque falam (atributo consequente ao sistema linguístico), mas porque relacionam ou organizam mediações simbólicas – de modo consciente ou inconsciente – em função de um comum a ser partilhado. (Sodré, 2014, p. 11).

Entendemos a comunicação enquanto práxis (ação-reflexão) que acontece no – e a partir do – encontro com o Outro. E que, por isso, realiza-se em uma determinada temporalidade, partindo de uma intenção e atravessando uma espacialidade até que se torne realidade. Comunicar é, sobretudo, a busca pelo vínculo, pela ponte, pelo sentido e pela ressonância. Como investigar um campo aparentemente tão subjetivo?

O pesquisador Ciro Marcondes Filho (2009) diz que a pesquisa em Comunicação é a investigação do ininvestigável, porque jamais se saberá o que é comunicado. Ela seria, portanto, avaliável apenas pelos seus rastros:

O ideal de um estudo comunicacional é aproximar, na medida do possível, o relato sobre o fenômeno vivido, o discurso linguístico, da vivência propriamente dita do acontecimento. (Marcondes Filho, 2009, p. 25).

Os objetos da comunicação, então, seriam o acontecimento (imanente, inerente) e os efeitos do acontecimento (transcendente). Só seria possível saber a comunicação do no movimento. E, nesse sentido, o verdadeiro não se limita ao verificável e acompanha os contextos.

Orientadas por esse entendimento, demos início à nossa investigação no campo da prática, partindo da hipótese de que o termo “humanização” poderia dizer respeito a algo que pode acontecer no processo, no uso (instrumental, ferramental, tecnológico) e/ou nos efeitos (ou rastros) da comunicação na contemporaneidade.

Para conduzir a nossa pesquisa observante e reflexiva, nosso primeiro movimento foi convergir nossas pesquisas individuais, sobre comunicação slow e comunicação autoral, em um olhar conjunto: compartilhando referências, discutindo abordagens e dialogando sobre modos de olhar e praticar a comunicação. Nosso objetivo era oferecer um olhar crítico e uma síntese de referências para as pessoas que buscam apoio teórico e prático para tratar da comunicação enquanto processo vivo, que tece as relações (e transformações) entre seres e cultura.

Entendemos que para investigar a comunicação com essa qualidade era preciso sair do diálogo entre duas e com as nossas fontes de pesquisa e partir para a observação do campo, dos modos de pensar, fazer e usar comunicação hoje. Entre junho de 2020 até abril de 2021, conduzimos um processo de escuta a partir de uma curadoria cuidadosa de vozes, informações e conhecimentos em torno de abordagens, componentes e elementos da comunicação em sua dimensão tocante ao humano. Hoje, temos mais de 770 minutos de material gravado em áudio e vídeo e nove relatos de entrevista registrados por escrito no site da iniciativa DesaceleraSP. Compartilhamos aqui alguns dos nossos achados dessa investigação ainda em andamento.

Buscamos ouvir abordagens, atributos e práticas dedicadas a um modo de comunicar brasileiro. Temos observado a riqueza desse mosaico vivo que é a comunicação em sua dimensão humana nas seguintes temáticas: a comunicação como diálogo (educação), a organicidade da comunicação, a comunicação assertiva e não violenta, a comunicação face a face no ambiente organizacional, a comunicação como ponte entre culturas (tradução/interpretação), a comunicação com consciência e artesanal, a contação de histórias como comunicação (fora dos contornos do storytelling), a comunicação jornalística e a diversidade, a  decolonialidade da comunicação, a comunicação multissensorial, a comunicação inscrita no tempo e a comunicação delicada.

Ao classificar os nossos registros, algumas palavras relacionadas ao universo de comunicação praticado pelas/os nossas/as entrevistadas/os dão outras pistas sobre os componentes da humanização da comunicação: ambientação, ambiente, amorosidade, visualidades, delicadeza, autoria, (de)colonialismos, face a face, multissensorialidade, slow, consciência, contexto, cuidado, design, diálogo, essência, fenomenologia, intenção, interpretação, memória, orgânico, escuta, espiritualidades, ponte, propósito, sentido, tecnologias, tempo, verdade e vínculo.

Nossa intenção não é chegar a um “checklist da comunicação humanizada”, nem propor um modelo nesse sentido. Queremos reforçar e dar a ver modos de comunicar e pensar a comunicação por brasileiras/os do nosso tempo, que refletem e atuam na resistência a uma comunicação massificada, padronizada, mecânica e pautada por contornos de uma sociedade acelerada, indexada pelas engrenagens tecnológicas e por um mercado que conduz a uma homogeneização e impõe modos de comunicar muitas vezes desumanos, associado a um contexto produtivista, transformando matéria de vínculo em mercadoria.

Até aqui, entendemos que buscamos um reencantamento da comunicação e que chegamos a um território reflexivo que se constituiu a partir da colheita que realizamos no processo de pesquisa e escuta, dando vida a alguns componentes que pensamos serem fundamentais para pensar a humanização da comunicação.

A tarefa que se apresenta na atual fase da pesquisa é a de organizar esses achados. Provavelmente, não chegaremos (nem queremos chegar!) a uma (nova ou renovada) definição de comunicação. Acreditamos que a pesquisa na arena das práticas comunicativas com essa qualidade humana possa apoiar a construção de ambientes de comunicação ancorados nas pessoas, amparados em confiança, com intenção de vínculo e de construção de diálogo. Esses ambientes comunicacionais humanos podem acontecer em empresas, organizações, salas de aula, grupos, famílias ou qualquer outro espaço composto por indivíduos que apostam na comunicação como prática organizadora do comum. Queremos, portanto, seguir compartilhando o terreno reflexivo fértil que encontramos, capaz de fazer germinar outras abordagens a partir dos aprendizados do percurso e das nossas inspirações e referências, a fim de sustentar a reivindicação de qualidades humanas para comunicação, como autenticidade e autoralidade, na prática e no tempo.

Referências bibliográficas

LELO, Thales Vilela. Faces do comum na comunicação: da partilha à disjunção. Galáxia (São Paulo). n.31 São Paulo Jan./Apr. 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-25542016122028. Acesso em 21 abr. 21.

MARCONDES FILHO, Ciro. Nova teoria da comunicação, v. 1: o rosto e a máquina: o fenômeno da comunicação visto dos ângulos humano, medial e tecnológico. São Paulo: Paulus, 2013.

MARCONDES FILHO, C. A Questão da Comunicação. PAULUS: Revista de Comunicação da FAPCOM, [S. l.], v. 3, n. 5, p. 17–26, 2019. DOI: 10.31657/rcp.v3i5.87. Disponível em: https://fapcom.edu.br/revista/index.php/revista-paulus/article/view/87. Acesso em: 23 abr. 2021.

SODRÉ, Muniz. A ciência do comum: notas para o método comunicacional. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

ZARIFIAN, Philippe. Comunicação e subjetividade nas organizações. In: DAVEL, Eduardo; VERGARA, Sylvia Constant. Gestão com pessoas e subjetividade. São Paulo: Atlas, 2009.