Texto original publicado por Carolina Messia, no Medium.
Por um mundo escrito à mão
ou Da prática de um verbo que escolhi pra mim
Escrever: verbo que convida a uma relação com o tempo diferente do digitar. Hoje mais digitamos do que escrevemos, e usamos este verbo para se referir àquele. Escolhi o desafio de escrever a primeira versão deste texto a lápis, num caderno, antes de digitá-lo, antes de vê-lo numa fonte diferente da minha letra. Mesmo tendo na escrita um lugar de conforto, ter recorrido à escrita à mão para algo que queria maior e diferente de um bilhete hoje me desperta ansiedade, uma sensação de demora, uma dificuldade grande de começar…
A marca do lápis fica no papel mesmo depois de apagar, o registro da rasura permanece, rabiscos, traços mais marcados que outros — ficam os rastros na trilha da escrita. Os indícios do que ocorreu durante o escrever ficam registrados: evidências e resíduos de um texto por vir.
De forma diferente acontece agora, passando o texto a limpo no computador, com a tecla backspace disponível. Uma tecla que deixa a consciência tão limpa quanto a brancura da tela do Word. Apague rápido para esquecer essa besteira; corrija rápido para não ver o erro; não cabe essa citação agora, apague; essa palavra não existe, apague; vamos, apague logo isso!. Para deixar marcas de sua intervenção nas versões do texto, é preciso ativar um recurso chamado “Controlar alterações”. A escrita à mão perturba o controle, nos tira dessa área “segura”.
Na página virtual, o cursor pulsa lembrando a gente de que o tempo está passando. O cursor é o metrônomo da escrita, convida ao movimento de iniciar a partir de um ponto definido pelo programa. O lápis sobre a mesa, inerte, espera pela mão e não indica por onde começar. O mesmo cursor-metrônomo nos provoca a digitar nos apps do celular.
Para subverter as fontes padrão que não representam nosso estilo e individualidade, usamos CAPS LOCK para “falar alto”, negrito para destacar, itálico para citações… para tentar nos ajudar a expressar melhor as emoções quando não encontramos palavras para tal, adotamos emojis. Quantas falhas de comunicação a velocidade da digitação não causa? Isso vale outra reflexão…
A escrita à mão é inimiga da pressa. É preciso mais tempo para a caligrafia do que para o toque numa tecla; é preciso selecionar e codificar informações, ideias e materializá-las no papel em palavras e numa estrutura inteligível. Há mais envolvimento emocional no processo de escrita à mão.
A mão movimenta o instrumento que registra, que marca o papel com a letra individual, autoral. No computador, o devir do texto já parece de outra pessoa, recoberto que está com uma fonte comum dentre outras disponíveis na lista de opções. Pouco se fala da mão no ofício do escrever. Elogiam a ideia, o estilo, o insight que o resultado do texto promoveu; já, se falam do processo de escrita, elogiam a criatividade e originalidade — valorizando o intelecto, a mente, a “cabeça” de quem escreve, não a mão, o vigor e o desenho do traço, suas rasuras, a quantidade de versões até o texto passado a limpo…
A clareza da linearidade da expressão depositada na página esconde as sombras da complexidade das ideias.
A história da palavra escrever carrega o processo artesanal. Nas línguas indo-europeias, as palavras ligadas ao escrever significam esculpir, cortar, arranhar. Do protogermânico “writan” (marcar, riscar) nasce o verbo “write”, em inglês. No latim scribere, a ação manual é “marcar com o estilo” (sendo estilo, no caso, o instrumento — a ponteira ou haste de metal).
Palavras relativamente novas para explicar o ato de registrar algo. Por volta de 4.000 aC os seres humanos começaram a deixar seus primeiros registros, a deixar suas marcas para si e para os outros. A escrita alfabética só veio depois, entre 1.400 e 1.000 aC. O ato de registrar fatos e contabilizar alimentos foi uma das maiores revoluções tecnológicas da humanidade. Nada havia transformado mais a relação humana com o presente, com o passado e com o futuro. Hoje estamos no meio de outra revolução tecnológica que afeta nossa forma de nos relacionar com os outros e com o tempo.
Ainda assim, ainda acredito no papel como espaço de transformação e na escrita como ato que transforma. Vivendo no século 21, em meio à agilidade dos aplicativos, a recursos tecnológicos que ficam obsoletos da noite para o dia, às respostas breves e urgentes, a informações esparsas, múltiplas, impalpáveis na “nuvem”, surgem pequenas e grandes revoluções feitas à mão — as mãos dos novos artesãos.
Os novos artesãos são aqueles que elegem uma ação artesanal como expressão de sua singularidade e do seu afeto tornado trabalho. Estão por toda parte: na cozinha, na agricultura, na costura, no crochê, na cerâmica, na marcenaria, na escultura, na pintura, no desenho, nos aromas, nos objetos… e na escrita. São antigos no fazer que escolhem, mas novos no modo como o fazem.
O fazer manual ampliou seu espaço no palco da transformação social e pessoal. O que é o fazer manual hoje? Penso que este fazer é um verbo que se escolhe conjugar com as mãos, ativando a potência de indivíduos em sua singularidade e na pluralidade. Um verbo cujo fazedor (sujeito agente) é protagonista e cujo resultado (arte, produto) promove reflexão, incorpora significados e, mesmo estruturado por um método, imprime na forma algo único e irrepetível. O fazer do aqui e agora.
Meu manifesto hoje é por um mundo feito à mão. Minha pequena revolução é manuscrita, pois escolho o verbo em que me sinto agente protagonista: por um mundo escrito à mão. De todos os verbos de ação, hoje é na prática do escrever que consigo refletir melhor sobre o processo do meu fazer, é o que me amplia mais a consciência para as outras práticas e me ajuda a fazer escolhas — escolhas refletidas na escrita. Que nossas mãos possam se unir, criar e construir novas realidades. Qual é o seu verbo hoje? Qual potência sua é ativa a partir desse verbo?
(Este texto dialogou com reflexões de várias conversas, mas sobretudo com a que tive com a Ciça Costa e o Bruno Andreoni no final de junho/2018 no estúdio In Totum, e com as leituras de Michel Butor, em seu “Éloge de la machine à écrire”, e de Humberto Maturana, em sua “Ontologia do conversar” e “Tudo é dito por um observador”).