Texto aberto sobre as relações entre tempo, dinheiro e trabalho

Por conta das andanças que estamos fazendo pelo Desacelera SP, temos nos deparado recorrentemente com questões que envolvem as relações entre tempo, dinheiro e trabalho. Sempre em nossas rodas de conversa, oficinas, cursos e diálogos por aí, alguém traz alguma contribuição ou provocação sobre este tema para nós.

 

Movida por estas colaborações – sem respostas para as inquietações que elas me trazem; sem bagagem científica; sem pretensão conceitual, mas com muita vontade de entender as coisas do ponto de vista de como elas tocam a vida e o cotidiano das pessoas – achei que fazia sentido escrever um texto aberto sobre elas, para que vocês pudessem nos ajudar, trazendo novas inquietações e referências que nos apoiem numa tarefa que nos colocamos, que é a de trazer este tema para perto, porque ele parece ser muito central quando falamos sobre os usos do tempo e a consciência temporal.

 

É muito importante evidenciar que quando falamos em desacelerar, estamos conectados a um movimento amplo – e que cresce a cada dia no mundo: o Movimento Slow. Ser slow não quer dizer necessariamente fazer tudo de forma lenta ou a passo de tartaruga, mas sim, ter consciência do uso do seu tempo, de modo que suas escolhas temporais sejam justas com o que você deseja e acredita.

 

Eu, por exemplo, não levo uma vida lenta. Na verdade, meu dia-a-dia é bem “corrido”. Moro em São Paulo. Sou mãe de dois filhos que frequentam escolas. Tenho um companheiro, família e amigos e gosto de poder priorizar a presença afetiva e efetiva nestas relações. Trabalho. E trabalho bastante. Enfim… acho que cada um sabe o que cabe no seu tempo. Eu tenho buscado desacelerar, no sentido de ter consciência das minhas escolhas de tempo; e de fazer caber cada vez mais no meu tempo o que faz sentido para mim, de modo que não me sinta refém de uma correria que é externa, mas sim, dona de um ritmo que é interno, meu, e que eu respeito ao dedicar meu tempo para coisas que fui eu que escolhi.

 

Isso exige um esforço grande; um movimento interno, que se traduz em uma postura para o mundo. E em escolhas, algumas delas, sacrificantes do ponto de vista da sociedade de consumo em que vivemos, por exemplo…

 

Tempo é dinheiro?

 

O Desacelera SP é uma desaceleradora de pessoas e negócios. Apoiamos pessoas, grupos e organizações a repensarem as suas práticas e discursos relacionados ao tempo a partir de um processo de tomada de consciência sobre suas escolhas temporais; que – de modo bem concreto – tem a ver com pensar como priorizamos gastar nosso tempo.

 

Quando provocamos as pessoas a pensarem nisso, imediatamente nos deparamos com alguns motivos externos que elas costumam responsabilizar por não terem uma relação saudável com seu tempo. E um destes motivos é o trabalho.

 

Talvez o primeiro exercício a fazer seja o de entender que o tempo tem sido uma das unidades de medição mais convencionais para se remunerar a força produtiva das pessoas. Você vende 40 horas da sua semana por xis reais (em tempos de reforma trabalhista, até quando isso vai ser assim, não é mesmo?). Mas trabalhemos com alguns parâmetros que talvez não mudem tanto assim: talvez o tempo siga sendo (por um bom tempo) a medida para se vender força de trabalho.

 

E daí nasce a relação tempo – trabalho – dinheiro e a primeira indagação que costumamos ouvir por aí: “como posso fazer escolhas relacionadas ao tempo, se preciso trabalhar 40 horas semanais (e gastar outras tantas me deslocando pela cidade) para pagar as minhas contas?”. Quando ouvimos esta questão, provocamos as pessoas a pensarem sobre suficiência: será que você precisa trabalhar tudo que trabalha para ter tudo que tem e comprar tudo que compra? Mas reconhecemos que a opção de pensar sobre isso pode ser um privilégio. E reconhecemos – junto com isso – um recorte de classe de todo este debate.

 

Quem pode fazer escolhas sobre seu tempo?

 

Fiquemos com estas primeiras questões.

 

Numa determinada oportunidade, um participante de uma oficina nos contou uma historinha. Ele contou que o ditado popular “tempo é dinheiro” é, na verdade, uma releitura do original “tempo é riqueza”, que deveria nos provocar a pensar sobre o que é riqueza para cada um de nós; e não fazer a associação direta entre tempo e dinheiro. Uma provocação interessante, totalmente conectada com a ideia de termos consciência do uso do nosso tempo e de usá-lo para o que faz sentido e nos é precioso ou valioso.

 

Voltando ao meu exemplo pessoal, o tempo que passo com meus filhos e em família hoje é um dos meus tempos mais preciosos. Assim como o tempo que tenho com meus alunos; os tempos de trocas com meus colegas. Enfim… talvez o tempo precioso seja este tempo das relações humanas. Da convivência.

 

Tempo livre tem valor?

 

E aí, vamos para uma outra zona de indagações que tem surgido com força em nossa roda desacelerada: o tempo que usamos para fazer coisas que não são consideradas produtivas neste sistema em que vivemos é um tempo cada vez mais escasso e menos valorizado. Passar tempo com os filhos? Tempo de lazer? Tempo de ócio? De novo: quem pode escolher ter estes tempos hoje? Quem tem direito a eles hoje?

 

E aí, voltam as relações com o dinheiro e o trabalho, como vetores muito potentes de exterminação destas possibilidades de ‘tempo livre’ e de desfrute.

 

Mas o trabalho é vilão da história?

 

Não deveria ser. Deveríamos trabalhar com mais prazer e equilíbrio. Mas algo nos incomoda também no discurso de que “quando trabalhamos com propósito, tudo faz sentido”. Há algo de incompleto nestas histórias de pessoas que abandonam tudo para encontrar seu propósito; ou nas empresas que fazem do propósito mais um discurso em prol da produtividade sem mediações humanizadoras destas relações. A começar, que parece bem estranho a pessoa encontrar apenas um propósito na vida! Por que não muitos? E por que não despropósitos? Ou, como disse uma amiga outro dia, por que não o propósito virado do avesso e depois revirado? Por que este processo sempre aparenta ter uma mão única e resoluta depois que alguém encontra o santo graal do propósito?

 

Também não queremos que o discurso sobre desaceleração alimente a falácia de que quando trabalhamos com propósito (qual?), podemos trabalhar em quaisquer condições em nome deste propósito.

 

Muito menos queremos que o discurso de desacelerar sirva para justificar precarização e um outro discurso (que pode ser bem meritocrático e individualista) do “empreendedorismo como solução para todos”.

 

Nosso sonho é de que as reflexões sobre a consciência temporal e a convivência afetiva no trabalho apoiem a construção de relações mais equilibradas entre tempo, dinheiro e trabalho; e que estas proporcionem que trabalhemos de forma balanceada (talvez menos?), sejamos remunerados de forma mais justa (talvez mais?); e possamos fazer escolhas relacionadas ao trabalho que respeitem as escolhas de como queremos gastar nosso tempo de modo geral, sintonizando os vários eixos da vida e não apenas pensando em sermos produtivos todo tempo.

 

Flexibilidade?

Jornadas reduzidas (que preservam direitos e evitam a terceirização, claro)?

Estas são algumas das possibilidades que aparecem como “soluções” para equacionar as relações entre tempo, dinheiro e trabalho, por exemplo, em plataformas mais políticas, como a do decrescimento sereno, que também nos inspira muito e que é um dos componentes conceituais do movimento pela desaceleração da vida.

 

Quando estas perguntas e inquietações aparecem nas nossas atividades, nós as acolhemos com muito carinho, porque queremos de fato poder contribuir para que as pessoas reflitam sobre isso.

Mas não queremos ser idealistas, nem ingênuos.  

 

E como gostamos mesmo é de ouvir e contar boas histórias, queríamos pedir para que vocês nos contem:

 

Qual a sua história da relação tempo – dinheiro – trabalho?

Que conflito e que conforto ela te inspira?

Como conciliar a consciência temporal com as escolhas de trabalho e dinheiro?

As coisas urgentes são todas de trabalho? E as importantes? E as prioritárias?

Quanto tempo você gasta com trabalho e quanto com coisas não consideradas “produtivas”?

Parece possível fazer mais coisas “não produtivas” na sua vida hoje?

 

Agradecemos muito a sua leitura, o seu tempo dedicado e atento e a sua colaboração com esta construção. <3

* Michelle Prazeres é jornalista e idealizadora do Desacelera SP.