O suco de hibisco chega no balcão, e a gargalhada dela – em clima de intimidade com as pessoas que atendia – chama a atenção. Aberto, solto e gostoso de ouvir, o sorriso cativa e até causa estranheza em pleno horário de almoço em um dia da semana na cidade de São Paulo. Mas seus ecos atraem, principalmente, por serem a primeira evidência de uma mulher que estava toda ali, inteira, feliz. Sem nada que denotasse a mais ínfima transitoriedade, Talitha Barros estava totalmente presente e, mesmo diante das infinitas possibilidades de uma cidade como a capital paulista, só poderia estar ali.
Ali à frente de um sonho, ali no manejo de suas panelas, ali à frente do seu projeto de vida: o Conceição Discos & Comes. Mas, quando se trata de realização pessoal, nem mesmo um “ali” pode ser interpretado como uma expressão simples. Em referência à complexidade que define São Paulo, sua cidade natal, neste “ali” está a ancestralidade do avô indígena; o vigor dos pais moradores da zona sul da capital; a curiosidade da menina que, desde os oito anos, anda de ônibus; a vontade de entender a humanidade da jovem que estudou antropologia na USP; e, acima de tudo, a sensibilidade da mulher que descobriu o prazer de viver perto do fogo. Talento que os últimos 15 anos trataram de lapidar em experiências ao lado de chefs e em casas de renome.
Imagens: Solano Diniz
“Sempre gostei de estudar e de comer”, conta Talitha sem titubeios. E para criar a sua Conceição Discos, depois de tantos anos manejando panelas alheias, ela recorreu justamente a esses dois verbos: estudar e comer. Era do que precisava para responder à pergunta que martelava em sua cabeça: o que é ser uma cozinheira paulistana?
São Paulo é como o mundo todo, mas…
Mas diante da universalidade da cidade de São Paulo, com influências gastronômicas e culturais praticamente do mundo todo, a chef não se contentaria em abraçar esta ou aquela cozinha, deste ou daquele lugar. Antes de tudo, desejava uma casa que fosse essencialmente paulistana, sem, no entanto, invocar o DNA trivial de “metrópole mundial”. Tinha que ser o restaurante de uma cozinheira que nasceu aqui, e que por isso é curiosa, inquieta e tem esse senso de urgência típico daqui. “São Paulo está no meu jeito de ser, na minha forma de comer, no meu jeito de andar, de falar… E eu precisava respeitar isso”, explica.
E tal resposta para entender e interpretar a Paulicéia Desvairada, Talitha Barros encontrou, acredite se quiser, não em livros de gastronomia, mas na biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Estudando as transformações urbanas ocorridas nos último séculos, pesquisando as obras de Saturnino de Brito e de Prestes Maia, Talitha passou pela importância dos rios (à mostra ou enterrados, como o Anhangabaú e o Tamanduateí), por fazendas de gado, pelo cultivo do café e por plantações de arroz. “Além de entender mais a cidade como um todo, passei a amar mais certos lugares e a entender melhor a importância histórica de alguns ingredientes que fazem parte de nossos hábitos e tradições alimentares”, revela. BINGO! Nascia assim o conceito, o cardápio e a forma de receber e de servir do Conceição Discos.
Nessa reconexão com os sabores locais, Thalita revisitou ingredientes relativamente básicos, como o ovo caipira, “ovo é vida” diz; o arroz, que aparece em versões de pato, de suã, de lula, de mexilhão, de carne assada, de sururu, de moela ou ainda de abóbora com tutano, “na minha São Paulo não pode faltar arroz”; o rosbife e o tartar, “sempre tenros”; o pão de queijo, que surge com recheio de pernil e ovo mole, “dos deuses”; e o impagável pudim de leite. Além de bolos, cafés, sucos e cervejas especiais. Como era de se esperar nessa São Paulo raiz, todos as matérias primas utilizadas no restaurante possuem fornecedores que priorizam processos e culturas orgânicas.
Discos & Comes
Além do conforto e da disposição unusual do mobiliário, dos grafites e dos cardápios pintados nas paredes, que convidam a desacelerar; a vitrola, disposta ao lado de uma seleção de vinis, entra em cena explicando o primeiro sobrenome da casa: Discos. Com artistas como Nelson Cavaquinho, Maria Bethânia, João Bosco, Roberto Carlos e Cauby Peixoto, só para citar alguns, a seleção é feita por Talitha, mas fica à disposição dos clientes, que podem escolher o que querem ouvir tocar. “Só peço que esperem terminar o disco anterior, para não haver confusão”, brinca. Espera que traduz mais um conceito do lugar. “A vitrola está aqui justamente para fazer a pessoa entrar em outro ritmo, esquecer o celular um pouco, voltar a olhar no olho, retomar a delicadeza de pousar uma agulha sobre a tênue separação das músicas de um LP”. Os títulos estão à venda também.
Com capacidade para 28 pessoas, dispostas em aconchegantes sofás, mesas e cadeiras antigas, pufes e conversadeiras, o restaurante é uma linda homenagem a São Paulo, assim como a diminuta rua Imaculada Conceição, em Santa Cecília, foi homenageada ao ter seu nome como inspiração para o empreendimento.
Além do conforto e da descontração, chama atenção um sinuoso balcão verde água que abriga clientes, debruçados para o fogão no qual os pratos são preparados por Talitha, revelando outro grande trunfo seu: “sempre quis cozinhar na frente das pessoas, cortar cebola, misturar ingredientes, seduzir com cheiros e vapores”, revela. O que passa a tornar clara a localização estratégica do fogão, bem à porta de entrada.
Nas redes sociais, Talitha Barros é a Dona Conceição, a divertida personagem que se reporta a seus clientes numa linguagem poética que alinhava os ingredientes do prato do dia aos versos dos compositores das músicas que tocam em sua vitrola. A diversão e o humor também são ingredientes indispensáveis ali.
SERVIÇO
Conceição Discos & Comes
Rua Imaculada Conceição, 151 – Santa Cecília
Tel: (11) 3477-4642
Facebook: Conceição Discos
Instagram: @conceicaodiscos