Comunicar devagar: como o ensino, a pesquisa e a prática de jornalismo podem se inspirar no movimento slow para desacelerar

Resenha de Michelle Prazeres – do livro “The slow professor: challenging the culture of speed in the Academy” – publicada na nova edição da Revista Líbero, que traz o dossiê “Política Brasileira e Sociedade do Espetáculo”.
Leia o texto abaixo:

RESENHA POR MICHELLE PRAZERES

The slow professor: challenging the culture of speed in the Academy

Maggie Berg e Barbara K. Seeber

University of Toronto Press, 2016

ISBN: 978-1-4875-2185-1

Em “The slow professor: desafiando a cultura de velocidade na Academia”, as canadenses Maggie Berg e Barbara K. Seeber analisam a “corporativização da Universidade” e propõem a adoção do modus operandi slow para resgatar o sentido da pesquisa, da docência, da aprendizagem e da produção de conhecimento. Do mesmo modo, é possível aplicar as “lentes lentas” do movimento slow para pensar a produção simbólica jornalística.

Em uma crítica apoiada nas suas experiências como docentes e pesquisadoras; e em estudos sobre o tempo em instituições de ensino superior, as professoras mostram como as lógicas da velocidade, da produtividade, da concorrência, da competição e da eficiência estão transformando a Universidade em “espaços mercadológicos de educação”. A resposta a esta dinâmica estaria em “tomar o tempo da reflexão e dialogar, resgatando a vida intelectual na universidade”.

À primeira vista, o livro pode parecer nostálgico, ingênuo ou anacrônico. Afinal de contas, a velocidade parece ser um valor incontestável dos nossos tempos. No entanto, trata-se de uma obra de ampliação da consciência temporal e de uma aguda crítica à aceleração social do tempo (ROSA, 2010) e seus efeitos na sociedade; na educação; e – em especial – na Universidade. Crítica que pode ser aplicada, igualmente, às estruturas de produção de jornalismo, quando pensamos que é possível produzir informação em ambientes digitais para além de brevidades.

Citando Parkins e Craig (2006), as autoras afirmam que o “slow não é um retiro contracultural da vida cotidiana; não é um retorno ao passado, aos bons velhos tempos; nem é uma forma de preguiça, nem uma versão lenta da vida. Trata-se, sobretudo, de um processo pelo qual a vida cotidiana é abordada com cuidado e atenção; é tentar viver no presente de forma significativa, sustentável, reflexiva e prazerosa”.*

Ainda que aplicada ao contexto educacional, a crítica das autoras está alicerçada em valores e dinâmicas presentes em outros campos sociais, que inspiram o “movimento slow”, cuja ação social se articula em torno da desaceleração da alimentação (slow food, referência para as autoras), da infância (slow kids), das cidades (slow cities) e de outros campos, como trabalho, saúde e bem-estar (slow medicine) e lazer. Aqui, buscamos aplica-la ao capo da comunicação, ao pensar na ideia de Jornalismo lento.

POLÍTICA E PRAZER; LUTA E DESFRUTE

A inspiração no movimento slow se dá em função do entendimento de que a corporativização da Universidade “acelerou o relógio”, ao trazer para o ambiente acadêmico sentidos de gerência, eficiência, produtividade e competitividade. Desacelerar, portanto, seria uma resposta com potencial não somente para revigorar o cotidiano, mas também para repolitizá-lo. Colocar a filosofia slow na prática seria combinar política e prazer; luta e desfrute.

No capítulo 1, “Time management and Timelessness” (sobre gestão do tempo e o que seria, em tradução livre, “intemporalidade” ou “destemporalidade”), as autoras fazem uma severa crítica à noção de gerenciamento do tempo e propõem uma contra-cultura: o slow, que valoriza o equilíbrio e “ousa ser cético quanto às profecias da produtividade”.

O resgate do prazer é o argumento central de “Pedagogy and pleasure” (pedagogia e prazer), o capítulo 2, em que Berg e Seeber falam de aprendizado e afeto, mostrando que estão intrinsecamente relacionados.

No capítulo 3, “Research and understanding” (pesquisa e compreensão), as autoras discutem como o “tempo largo” e a atenção plena são condições para a compreensão e a pesquisa; e como a cultura da velocidade vem impactando estas práticas, que passaram a ser condicionada a resultados, instrumentalismos, lógicas do marketing e da gestão. Elas sugerem que, em lugar de dizer “estou produzindo”, um pesquisador deve afirmar “estou contemplando” ou “estou em uma alegre busca” ou ainda “estou dialogando”. Usar a linguagem slow é um modo de nos conectar com um movimento que é ao mesmo tempo prático e político.

Berg e Seeber afirmam que manter as relações e um senso de comunidade é fundamental. No capítulo 4, “Collegiality and community” (colegialidade e comunidade), elas tratam da importância do autocuidado e do cultivo de relações não sob a lógica do “networking”, mas sob a ótica da formação de uma comunidade de apoio, amparo e sustentada nos valores da colaboração e do compartilhamento de conhecimento e habilidades.

Para “Colaborar e pensar juntos”, tema do capítulo de conclusão da obra, as autoras afirmam que é preciso fundar um ambiente de suporte e amparo, baseado em relações de confiança.

Desacelerar é afirmar a importância da contemplação, das relações, da fruição e da complexidade. É uma atitude que “dá sentido para permitir que a pesquisa leve o tempo necessário para amadurecer e torna mais fácil resistir à pressão de ser mais rápido. Dá sentido ao significado de pensar em grupos de estudo como uma comunidade, não como uma competição”. É sobre abrir espaço para os outros e para a diversidade. É sobre pensar em processos e não necessariamente (ou apenas) em produtos. Deste modo, é pensar no tempo como algo constitutivo: um “tornar-se do que não se foi antes”.

COMUNICAÇÃO DEVAGAR

Inspirados na obra, parece possível afirmar que a ideia de ir mais devagar se manifesta no campo da comunicação de modo evidente, quando se pensa (1) na dimensão comunicativa da educação (e que podemos pensar na formação universitária, não raro sugestionada pelos movimentos mercadológicos e perdendo a ênfase na formação humanística); (2) na velocidade como engrenagem da produção acadêmica na área da comunicação (que muitas vezes se apressa em produzir leituras baseadas na conjuntura – e isso é bastante comum, especialmente no que diz respeito aos objetos mais evidentes da cultura digital); e (3) na dimensão epistemológica do campo da comunicação em si.

No entanto, queremos propor aqui o exercício de reflexão sobre a reverberação da mirada slow para a comunicação como prática; tratando especificamente do jornalismo. O lento, neste caso, não seria um jornalismo devagar em absoluto, mas um jornalismo realizado na perspectiva da desaceleração no que diz respeito aos processos de produção, mas também ao produto jornalístico e aos modos de recepção¹.

¹Adiantamos que é possível pensar no jornalismo lento, tanto como objeto de prática jornalística, quanto como método de ensino em jornalismo.

JORNALISMO LENTO

Na prática, o produto de um processo de jornalismo lento pode lembrar o que conhecemos como jornalismo literário ou jornalismo investigativo. No entanto, cabe ressaltar que este não se trata de um novo formato jornalístico; de uma nova linguagem; ou de um mecanismo estratégico de produção e engajamento; mas sim de processos que envolvem necessariamente (1) o contexto célere da comunicação na cibercultura; e (2) a modalidade prática de jornalismo alicerçada no contraponto a este contexto.

Ao propor a desaceleração da produção, da oferta (circulação e distribuição) e da recepção do produto jornalístico, o jornalismo lento se inscreve no campo da crítica da comunicação e da velocidade; e, do ponto de vista prático, se situa na zona de interface entre comunicação, compreensão, afeto e ecologia da comunicação.

Ainda que as práticas de comunicação lenta sejam relativamente demarcadas pelo movimento “slow media”, o jornalismo lento como reflexão teórica que emerge desta experiência vivencial demanda imersão e aprofundamento, que permitam ao mesmo tempo desvelar seus alicerces e contribuir para a sua construção.

Esta tarefa se estrutura a partir de pelo menos três perspectivas: (1) a desnaturalização da velocidade como elemento central do jornalismo em ambientes digitais; (2) a crítica ao uso compulsório das tecnologias (e seu uso apropriado com propósito jornalístico); (3) a análise das potências das mídias digitais para a construção de um processo de produção, distribuição e recepção jornalísticas com produtos reflexivos e engajadores a partir da criação de vínculos afetivos e reflexivos.

Este esforço trata menos de delimitar um conceito e mais de demarcar um campo de elementos e aspectos que compõem uma mirada para a práxis. Trata, portanto, de organizar aspectos de uma atitude cognitiva para promover olhares e percepções para coisas que devem ser experimentadas, tendo em vista uma parametrização generosa e aberta do objeto.

O nome ‘jornalismo lento’ não traduz a intenção de cunhar um conceito, mas demarca, formata e configura uma série de práticas e procedimentos agrupados sob esta noção, ao tecer costuras e diálogos entre o manifesto “slow media”, aos campos da comunicação afetiva e da comunicação não-violenta e as noções de (1) cibercultura como cultura de época (LEMOS, 2004; e TRIVINHO, 2016); (2) cultura da participação no cenário de convergência (JENKINS, 2008); (3) crítica da velocidade (VIRILIO, 1996); e (4) ecologia da comunicação (ROMANO, 1998).

Ao olhar para o contexto cibercultural e buscar reconhecer características que circunscreveriam uma prática jornalística desacelerada, é possível enumerar que: (1) do ponto de vista da produção, as práticas de jornalismo lento privilegiam a investigação, a checagem e a precisão; desfrutam de tempo de apuração; apostam em histórias inéditas e de interesse humano; (2) no que diz respeito à forma, estas práticas exploram os potenciais dos ambientes digitais e dos formatos de narrativa de ‘cauda longa’; em narrativas mais densas, que por vezes, podem se aproximar do “story telling”; (3) alguns valores orientam esta produção, como a transparência, a qualidade, a perfeição, a reflexividade, a sustentabilidade, a credibilidade, o respeito e a confiança; (4) no que diz respeito aos sujeitos envolvidos na produção, as práticas de jornalismo lento apontam para tendências de colaboração e formação de inteligências coletivas (entendidas como grupos com interesses semelhantes, habilidades diversas e que se reúnem para a execução de um projeto comum). Elas sugerem que o jornalista deve ser “monotarefa”; (5) já em relação ao que poderiam ser considerados formatos mercadológicos, o slow indica um jornalismo do presente e da presença, que abriria mão do “fetiche do furo” em nome do valor da qualidade; e que – portanto – tem sua viabilidade financeira muitas vezes restrita a formas independentes de financiamento; e (6) a recepção do jornalismo lento seria um processo atemporal, relacionado a uma construção discursiva dialógica, processual, em que a colaboração e a interação se sobreporiam ao caráter de transmissão. Seus conteúdos são relevantes para uma comunidade (e aqui cabe ressaltar que esta comunitário pode não ter um sentido apenas geográfico, mas também simbólico, por poder se tratar de comunidade de interesse reunida na rede). Sua distribuição seria feita de modo “orgânico”, sem relações com a publicidade ou com sistemas de alavancagem de algoritmos em ambientes digitais. É um conteúdo baseado na compreensão e de audiência colaborativa (prosumers); e feito com foco no local (aqui sim, o comunitário tem forte denotação geográfica) e em pequena escala. Estas práticas se apoiam no potencial das mídias sociais enquanto redes de construção de nichos e comunidades de relacionamento que se reúnem por identificação.

Afeto, confiança, sentido e significado, tempo processual, fluxo, reflexão, diálogo, convivência, prazer, plenitude, atenção, pausa, conexão são todas expressões do léxico slow que Berg e Seeber mobilizam para criticar a os efeitos da aceleração social do tempo na educação e propor a resistência à corporativização da docência, da pesquisa e da produção de conhecimento. Tais categorias podem ser mobilizadas também para pensar a pesquisa, o ensino e a prática do jornalismo.

 

REFERÊNCIAS

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre, Editora Sulina, 2004.

PARKINS, Wendy; e CRAIG, Geofrey. Slow living. Oxford: Berg, 2006.

ROMANO, Vincente. Ecología de la comunicación. Hondarribia: Argitaletxe Hiru, 1998.

ROSA, Hartmut. Alienation and acceleration: towards a critical theory of late-modern temporality. NSU Press, 2010.

SLOW FOOD BRASIL. Manifesto Slow Food. Disponível em: http://www.slowfoodbrasil.com/slowfood/manifesto Acesso: 08/11/2017

TRIVINHO, Eugenio. A dromocracia cibercultural: lógica da vida humana na civilização mediática contemporânea. São Paulo: Paulus, 2007.

______, Jornalismo em ruínas: a condição social-histórica da produção noticiosa convencional diante da potência de prontidão e da explosão sígnica das redes glocais.  In: PINHEIRO, Amalio; e SALLES, Cecilia Almeida (Orgs). Jornalismo expandido: práticas, sujeitos e relatos entrelaçados. São Paulo: Intermeios, 2016.

VIRILIO, Paul. Velocidade e política. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

*Os trechos citados foram interpretados em tradução livre.

MICHELLE PRAZERES

Doutora em Educação (USP) e Mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) , é jornalista formada pelo Centro Universitário da Cidade, com especialização em Jornalismo Online na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Na Cásper Líbero, leciona Novas Tecnologias da Comunicação no curso de Jornalismo. É especialista em projetos educativos com uso de tecnologias digitais e em projetos de comunicação e tecnologias para a ação social e os direitos humanos.